Com uma das maiores redes mundiais de museus, óperas e bibliotecas públicas, Alemanha é uma líder global de difusão artística. Na França, é longa a tradição de estímulo estatal, e assunto é prioridade de Estado.
Filarmônica de Berlim em Nova York: uma das melhores do mundo e orgulho alemão, é sustentada com dinheiro público
Dois modelos de sucesso, que servem de exemplo e tentam ser copiados em outros países. Com uma das maiores e melhores redes de museus, casas de concerto, teatros, óperas e bibliotecas públicas do globo, a Alemanha é considerada um centro difusor artístico como poucos no mundo. No país, arte e cultura são principalmente sustentados por verbas públicas, de forma descentralizada, com especial participação das administrações regionais. Já a França tem uma tradição centenária de incentivo à cultura reconhecida internacionalmente. No país, o tema sempre foi prioridade de Estado, artigo de exportação e até mesmo motor da economia.
ALEMANHA: Verba pública e liberdade artística
Na Alemanha, a cultura é em maior parte mantida com dinheiro público. O governo federal entra com uma parcela minoritária dos incentivos. As maiores quantias vêm dos municípios (cerca de 45%) e estados alemães (com cerca de 40% dos financiamentos estatais à cultura). A federação dispõe apenas cerca de 15% da verba pública para incentivos culturais.
Na federação alemã, o poder político e administrativo é bastante descentralizado, formado por uma grande rede de instituições de caráter estadual, regional e local, numa estrutura que diverge do modelo brasileiro, caracterizado por concentrar muitos poderes no plano federal.
Subsidiaridade
Uma detalhe importante também é o chamado princípio da subsidiaridade, segundo o qual a menor unidade administrativa deve arcar com determinada responsabilidade, antes que a instituição correspondente encontrada no nível superior a assuma. Isso leva a que as menores unidades, que são as cidades e os municípios, venham a assumir a maior parte do fomento à cultura, levando a uma variedade alta e diversificada de ofertas culturais.
Segundo números da Destatis, a agência federal de estatísticas, um total de 10,4 bilhões de euros foi gasto em 2015 pelos fundos públicos na Alemanha com cultura. O último Relatório Financeiro Relativo à Cultura do Destatis, de 2018, contém dados de 2015, devido ao longo período de tempo necessário para a coleta de dados nos diversos níveis públicos da federação.
No documento, o governo alemão afirma que “esse financiamento de uma variada oferta cultural de fundos públicos é um compromisso com o alto valor da cultura na sociedade e serve também à proteção da constitucionalmente consagrada na liberdade de arte.
Sem pressão do mercado
Há o entendimento na Alemanha que o Estado precisa garantir essa liberdade artística prevista na Constituição incentivando a arte e a cultura, evitando assim que estas sejam submetidas às pressões do mercado livre e a expectativas concretas de benefícios a partir dela.
“Na Alemanha, a cultura é um dever do Estado, sendo tido como algo tão importante como construir estradas, promover o sistema de saúde e que, por isso, é necessário se pagar impostos”, afirma Marina Ludemann, diretora do Goethe-Institut de Porto Alegre.
“Por isso, existe a preocupação de que seja algo que não deve ficar dependente da contribuição voluntária de patrocinadores”, frisa, lembrando que na Alemanha há contribuições privadas para a cultura – sem mecanismo de renúncia fiscal específica como contrapartida do Estado –, na forma de doações, parcerias ou patrocínios que, na maioria dos casos, entram como verbas complementares a projetos cofinanciados publicamente.
Discreta participação privada
Assim, o montante de recursos privados que entram na cultura em solo alemão é relativamente discreto, se comparado aos gastos públicos. Segundo estimativa do Destatis, em 2015, 1,2 bilhão de euros em capital privado entraram em instituições culturais subsidiadas com recursos públicos, a partir de recursos vindos de fundações e outras instituições privadas.
O fato de o relatório se concentrar basicamente nos gastos públicos com cultura faz com que os recursos privados só sejam citados no documento na forma de estimativa. A estimativa do Destatis também não inclui estabelecimentos totalmente financiados pela iniciativa privada, como teatros e outras instituições culturais – que são minoria, já que a maior parte das instituições culturais alemãs, como óperas, teatros, museus, centros culturais e casas de concerto, são estatais ou cofinanciadas com dinheiro público.
Marina Ludemann observa que no Brasil, muitas vezes a dependência da decisão de empresas isoladas faz com que projetos culturais fiquem dependentes de decisões de mercado ou deixem de ter continuidade devido a cortes no orçamento das companhias. “No Brasil, grande parte da cultura é financiada exclusivamente com dinheiro de imposto, que na verdade é o dinheiro do contribuinte. Só que quem decide se um projeto acontece ou não é a economia privada”, ressalta a gestora cultural.
FRANÇA: Estado centralizador e estímulo ao mecenato
O incentivo à cultura na França tem longa tradição estatal. O tema é considerado uma prioridade politica. O país tem historicamente uma tendência a forte controle do poder central nessa área, algo que nos anos 1980 se tentou flexibilizar. As medidas incluíram leis de estímulo à descentralização, visando dar mais autonomia a regiões e municípios e promovendo a criação de uma série de centros culturais administrados por instituições e autoridades locais.
O incentivo cultural continua tendo participação significativa do Ministério da Cultura francês, responsável por mais de 50% das verbas públicas disponibilizadas para cultura no país (só o Orçamento federal é de quase 3 blihões de euros), enquanto os municípios contribuem com quase 40%, sendo o restante fornecido pelos départments e as regiões.
Lei Aillagon
A partir da década de 60, o mecenato privado começou a ser mais fortemente fomentado, com a criação de uma série de normas. Um marco importante foi a Lei Aillagon. Lançada em 2003, ela colocou as legislações fiscais do país de favorecimento do mecenato cultural entre as mais vantajosas do continente europeu.
A regra, que leva o sobrenome do então ministro da Cultura, do governo Jacques Chirac, oferece 60% de dedução fiscal para as empresas, limitada a 0,5% do faturamento delas. Para as pessoas físicas, a isenção do imposto de renda é de 66% da contribuição feita à cultura, com limite anual de 20% dos seus rendimentos tributáveis.
“Na França, diferentemente do Brasil, sempre existe a visão a longo prazo. A cultura é tratada como elemento essencial pelo governo e como ferramenta da diplomacia cultural, sendo irradiada para dentro e fora do país. É considerada um motor da economia”, destaca Leonardo Tonus, promotor cultural e professor de literatura e civilização brasileira na Universidade de Sorbonne.
Outro ponto de contraste entre os dois países aparece ao se considerar a diferença de tratamento na França entre o mecenato e o patrocínio. O mecenato possibilita uma porcentagem de redução do imposto de renda, e o patrocínio permite o desconto das despesas com publicidade do resultado tributável. No Brasil as categorias de incentivo fiscal são a doação e o patrocínio. As duas admitem porcentagens de redução do imposto de renda.
Arte como meio de propaganda
Também há uma nuance cultural que diferencia os conceitos de mecenato e patrocínio entre Brasil e França. Na nação europeia, o mecenato é uma doação sem contrapartida direta, já o patrocínio é tido como um meio de promoção da empresa, podendo obter dedução fiscal como gasto publicitário. No Brasil, não existe diferença clara entre as duas modalidades, favorecendo uma tendência da iniciativa privada, que é apoiar exclusivamente projetos com potencial retorno para a imagem da empresa.
“No mecanismo de isenção fiscal da Lei Rouanet, todo o incentivo à cultura fica nas mãos do mercado”, critica Tonus. O brasileiro é organizador há seis anos do evento Primavera Literária Brasileira – iniciado em Paris e que hoje percorre anualmente países europeus e da América do Norte entre março e junho. “Isso faz com que a promoção cultural fique restrita às regiões ricas e acaba a impressão de uma diversificação da cultura, contribuindo para uma exclusão social por questões culturais”, sublinha.
“Já na França, a promoção artística não fica restrita àquelas atividades que dão publicidade às empresas. O Estado que vai reequilibrando esses desníveis entre regiões e nichos diferenciados”, frisa Tonus.