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Cemitério Municipal de Curitiba

Ela quer levar você para o cemitério

Mariana Ohde
20 de julho de 2018, 16:02
Clarissa Grassi inventou a própria profissão e, hoje, trabalha para valorizar a história contada pelos cemitérios.

Quando Luci se deparou com as flores do jardim de sua casa, não hesitou. Colheu todas, colocou-as na barra da saia e as levou para os pais. A mãe, diante da destruição do jardim recém-plantado, quis repreender a filha, mas não conseguiu. A alegria e inocência da menina fizeram o pai rir e a mãe relevar o estrago.

Dias depois, Luci adoeceu e morreu, aos cinco anos de idade, em 1895.

A imagem da filha e as flores marcou o pai, Carlos Meissner, dono da então Casa da Louça. Em uma viagem de negócios à Europa, ele encomendou uma estátua que eternizaria a cena: a pequena Luci carregando as flores na barra do vestido.

A estátua, ainda hoje, enfeita o túmulo da menina, um dos primeiros do Cemitério Municipal de Curitiba. Esta é uma das centenas de histórias encerradas no terreno, no bairro São Francisco. É também a primeira que vem à mente da pesquisadora Clarissa Grassi, quando questionada sobre os casos mais marcantes que descobriu em 15 anos de estudos sobre o local.

Clarissa, hoje, contratada pela Fundação Cultural de Curitiba (FCC), atua como guia no Cemitério Municipal, além de ser sua protetora incansável. Ela organiza e realiza visitas temáticas mensais, visitas noturnas, entre outras – pequenos cursos sobre a história da capital que têm se tornado cada vez mais populares.

A cada grupo, Clarissa apresenta a arquitetura, aspectos culturais e históricos contados pelo cemitério – o primeiro de Curitiba, fundado em dezembro de 1854.

Para se ter uma ideia, em 2017, foram 2.201 visitantes, ao todo. Neste ano, até junho, esse número já chegou a 1.433 pessoas. A atividade é gratuita e cada visita costuma ter de 40 a 50 vagas. Neste sábado (21), uma visita com o tema Futebol já está lotada: 80 participantes.

Mas as campeãs de participação costumam ser as visitas noturnas, e já há grupos programados para a próxima semana. “É uma visita que traz muita gente, a noturna, principalmente, é uma loucura. No ano passado, em julho, nós abrimos e tivemos 800 e-mails de inscrição em seis horas”, conta Clarissa.
Profissão inventada

Mas a vida de Clarissa começou em outras paragens. Formada em relações públicas, na Universidade Federal do Paraná (UFPR), ela atuou, por muito tempo, na área de comunicação corporativa.

Foi por acaso que ela descobriu a vocação. Em um dia de trabalho qualquer, no início dos anos 2000, ela recebeu uma demanda de textos institucionais para o site de um cemitério. Entre os materiais, estava o estudo da pesquisadora de Goiânia (GO), Maria Elisa Borges, sobre arte tumular.

“Fiquei apaixonada, porque sempre gostei de cemitério. Eu era aquela perguntadeira, sabe? ‘Quem está enterrado aqui?’, ‘Por que essa escultura?’, ‘O que esse cara fez, será que ele era importante?’”, conta Clarissa.

“Lendo aquilo, fiquei inspirada, peguei cinco rolos de filme e fui para o Cemitério Municipal. Nem sabia que era proibido fotografar. Matei os cinco rolos e fiz muitas imagens de detalhes de esculturas”, lembra.

De volta de sua empreitada, mostrou as fotos a amigos. A maioria pensou que se tratavam de imagens de praças. “Quando mostrava para as pessoas, elas gostavam, mas, ao descobrir que eram de um cemitério, ficavam resistentes”, conta.

Da indignação com a reação de aversão das pessoas, surgiu uma nova missão. “Pensei em encontrar uma forma de apresentar o cemitério de um jeito diferente para que elas olhassem para aquelas esculturas de um jeito diferente”.

Clarissa se debruçou sobre as pesquisas e lançou o primeiro livro, em 2006: “Um olhar… a arte no silêncio”. A obra reúne 54 esculturas fotografadas, em preto e branco, em detalhes, além das histórias das pessoas e informações sobre os túmulos.

O interesse, então, virou uma atividade paralela à carreira de comunicadora. A dedicação exclusiva viria tempos depois, após dois anos de trabalho na área de marketing de uma empresa de reflorestamento, em Santa Catarina – posto ao qual Clarissa não se adaptou.

Ansiosa por escolher um novo rumo, ela começou a se questionar: “O que eu gosto de fazer? Eu gosto de pesquisar cemitério. Gosto de pesquisar a história das pessoas. Mas alguém já procurou pesquisador de cemitério?”, brinca. “Não é uma profissão. Como posso me dedicar à minha paixão e sobreviver, financeiramente?”.

A resposta veio no meio acadêmico. De volta à Curitiba – e ao Cemitério Municipal -, ela começou um mestrado na área de sociologia, na UFPR. A dissertação? “Cidade dos mortos, necrópole dos vivos: a Curitiba do Cemitério Municipal São Francisco de Paula”. Claro.

“Muitos autores dizem que o cemitério é um resumo simbólico da sociedade. Ele realmente é um resumo simbólico de Curitiba”, explica Clarissa. “Identifiquei bairros, ao longo do cemitério. Tem o Centro Histórico, tem o Batel, que é a parte chique, com os mausoléus, tem a periferia. E eu fui buscar as pessoas que moravam nesses bairros”, conta.

Com as pesquisas e o lançamento de um guia sobre o local, veio a ideia das visitas. “Você começa a esbarrar com nomes de personalidades e era uma história de Curitiba que eu não conhecia”, conta. Para contar essa história, as visitas guiadas começaram em 2011, mas, até 2016, Clarissa atuava de forma voluntária.

Em 2017, contratada pela FCC, ela conseguiu ampliar as visitações e atividades. O cemitério, finalmente, deixou de ser um hobbie e passou a ser profissão.
Mudança na cultura

Um dos principais objetivos de Clarissa, hoje, é mudar a forma como as pessoas se relacionam com os cemitérios. “A ideia é apresentar, às pessoas, o cemitério como um lugar de história. Tirar o ranço que as pessoas têm em relação aos túmulos, ao cemitério em si, por ser um ‘lugar de morte’”.

As visitas, segundo Clarissa, mostram a arquitetura, lembram e valorizam as personalidades e também as pessoas “normais”, como Luci. “Acaba sendo uma história da cidade. Ela é contada do fim para o começo. A gente parte do local do sepultamento, do término da trajetória daquela pessoa, para contar a história dela”.

Para Clarissa, o cemitério deve ser visto como um patrimônio da cidade. Por isso, ela, inclusive, luta atualmente pelo tombamento do local. O processo está em andamento e deve ser concluído até o fim deste ano.

Mas, para que seja bem-sucedido, o conhecimento do público é essencial. “Não adianta a gente tombar o cemitério se as pessoas não se reconhecem nele, não sentem que ele é parte da história da cidade”.
Relação com a morte

Um dos pontos essenciais do trabalho de Clarissa é entender a relação que temos com a morte. “A maneira como nós sepultamos nossos mortos diz respeito às nossa crenças, nossa situação econômica, aos referenciais artísticos e arquitetônicos que nós temos”, explica.

Ela esclarece que o cemitério é um lugar de instituição de memória. “Você institui a memória do seu ente querido por meio da construção do túmulo. A forma como você constrói, o que você escreve no epitáfio. É essa memória que vai ser acessada pelos visitantes”.

Para a pesquisadora, os cemitérios são uma forma de perpetuar histórias e dar um “olé” na morte. “Porque a morte é desaparecimento, esquecimento, e o túmulo entra como dispositivo de permanência dessa pessoa. A memória dela permanece por meio da construção” afirma.

A visitação de cemitérios é comum em vários destinos. Em Paris, por exemplo, o cemitério Père-Lachaise abriga nomes como Oscar Wilde, Victor Hugo e Edith Piaf, entre outras dezenas de personalidades francesas. O local está sempre entre os dez principais pontos turísticos da capital da França – onde pontos turísticos não faltam.

Na América Latina, o Cemitério da Recoleta, em Buenos Aires, Argentina, é outro exemplo, com nomes como o da ex-primeira dama Eva Perón e o escritor Adolfo Bioy Casares, entre outros.

“Aqui no Brasil, essa coisa da visitação nos cemitérios é relativamente recente. Nós temos iniciativas em outros estados, mas, até onde sei, só em Curitiba e em Belo Horizonte elas são fixas. A gente também tem o cemitério da Consolação, em São Paulo, que foi um dos primeiros”.

Curitiba é o único município que oferece a atividade e a cidade é pioneira em visitas temáticas.
Visitas para todos os gostos

Neste sábado (21), uma visita guiada terá o tema Futebol. A turma está lotada, mas a próxima empreitada já tem data marcada: as visitas noturnas começam na próxima semana.

Neste ano, as visitas temáticas já abordaram temas como religiões, arquitetura e geologia, personalidades negras, como Enedina Alves Marques, a primeira engenheira negra, na década de 40, imigrantes e empresários importantes do Paraná – como Agostinho Ermelino de Leão Junior, da Matte Leão, Hugo Cini, das bebidas Cini, Floriano Essenfelder, dos pianos Essenfelder. As mulheres foram o tema de março, entre elas, a poetisa Helena Kolody.

Estão programadas, ainda, visitas sobre artistas visuais, como pintores, escultores, fotógrafos, entre outros; iconografia religiosa e arte tumular; um sarau de poesias, com a recitação de poemas junto aos túmulos de poetas como Helena Kolody, Emiliano Perneta, Emílio de Menezes, Romário Martins, Mariana Coelho e Euclides Bandeira.

Em novembro, músicos serão homenageados: Ivo Rodrigues, Bento Mossurunga, que compôs o hino do Paraná, e Augusto Stresser, que compôs a primeira ópera paranaense, chamada Sidéria. Em dezembro, o tema será a emancipação política do Paraná.

Cemitério Municipal

O Cemitério Municipal São Francisco de Paula foi fundado em dezembro de 1854, pelo então presidente de Província, Zacarias de Góes e Vasconcellos.

Localizado na Praça Padre João Sotto Maior, no bairro São Francisco, ele passou por diversas ampliações, ao longo do tempo, e atualmente conta 51.414 metros quadrados, divididos em 139 quadras, com um total de 5.743 túmulos, que receberam cerca de 80 mil sepultamentos ao longo de sua história.

Além das personalidades, o cemitério abriga personagens da cultura curitibana, como a jovem Maria Bueno, considerada santa na capital. Assassinada brutalmente, aos 30 anos, por um soldado no Centro de Curitiba, em 1893, sua história pessoal e as circunstâncias de sua morte são mistérios até hoje.

Há, ainda, figuras importantes da política e empresariado paranaenses, como o Barão do Cerro Azul, Emiliano Pernetta e a família Pedroso. E, é claro, curitibanos como Luci e o imigrante italiano e músico Pierino Riva, falecido em 1925. Seu pai encomendou uma estátua em tamanho real do filho para adornar o túmulo, que pode ser visitado ainda hoje.

Clarissa divide o Cemitério Municipal em “bairros”, que facilitam o estudo e visitação:

Centro Histórico, que compreende a maior parte dos túmulos antigos como estelas e oratórios construídos em mármore no século XIX;
Bairro Urbanizado, originalmente duas superquadras que, entre 1940 e 1950, sofreu várias intervenções, como a abertura de ruas para que seu traçado ficasse igual ao restante do cemitério, dando origem a sete quadras;
Batel, a porção monumentalizada do cemitério, explorada a partir do século XX, que concentra grande parte dos mausoléus ocupados por políticos e ervateiros;
Periferia, cuja ocupação é mais recente e caracterizada pelos túmulos verticalizados. Recebe esse nome por estar longe da entrada.